O paradoxo do preso «perigoso»
por Gobern Lopes*
Hoje não vamos falar do «Mata-Sete», assassino de 7 pessoas e que, ao fim de 14 anos de prisão, estava cá fora, não tendo saído antes porque não quis… Nem do jovem assassino psicopata da «Chacina de Ourém», que matou sem dó nem piedade uma família inteira, incluindo duas crianças de 3 e 6 anos, e que, para além das saídas precárias de que beneficiou, saiu em liberdade ao fim de 12 anitos de cadeia…
Também não vamos falar sobre a actual insatisfação do célebre «Tojó», o jovem que em 1999 assassinou o pai (conhecido médico de Ílhavo) e a mãe com 33 facadas, num ritual pretensamente satânico, e a quem o Tribunal de Execução de Penas tem negado os pedidos de saídas precárias, ainda não cumpridos sequer 10 anos de prisão (um conselho: mantém-te bem comportado na prisão, continua a tocar na banda e a mostrar serviço na biblioteca que, mais um ou dois anitos, vais ter a tua oportunidade…).
E, também, não vamos falar dos inúmeros casos de indivíduos que mataram a esposa, ou a filha de tenra idade, ou até a mãe ou o pai, e dos outros que assaltaram e mataram o desgraçado do gasolineiro, a empregada de balcão, o transeunte que ia a passar… e que passados poucos anos de prisão já estão a gozar de saídas precárias, do regime aberto e da liberdade condicional… Não vamos falar destes casos porque as páginas deste jornal não chegariam para publicar a lista…
Alguma coisa de anormal se passa
Vamos falar do António Ferreira, 69 anos de idade, preso desde 1994, ou seja, enclausurado há 15 anos, sem nunca ter beneficiado de uma saída precária, sem se vislumbrar se alguma vez alcançará a liberdade…
Nesta altura, estará o leitor a questionar: «o que fez este homem? Quantas vítimas assassinou? Quantas mulheres violou? Quantas pessoas torturou ou mutilou? De quantas crianças abusou?» Afinal o que fez este homem para estar preso há tantos anos sem uma oportunidade de «reintegração»?
António Ferreira está preso há 15 anos seguidos, cumprindo uma pena de 20 anos de prisão e não matou, mutilou ou violou ninguém! Ele foi condenado por, alegadamente, ter participado no rapto de um designado empresário e de o terem mantido em cativeiro durante 21 dias. O raptado viria a ser libertado numa operação conjunta das forças de segurança numa quinta na Serra da Lousã. A vítima era um velho conhecido da polícia, de nome «Carlos da Marília», residente no Bairro das Galinheiras (referenciado no meio criminal como «bufo») e condenado anteriormente por homicídio premeditado de um jovem, em 1982, a uma pena de 16 anos, da qual só cumpriria meia dúzia… Também era referenciado como um dos maiores traficantes de droga na zona de Cascais.
António Ferreira, na altura desta detenção, tinha 54 anos e estava há cerca de 2 em liberdade condicional após cumprir 18 anos seguidos de uma pena de 24 anos de prisão. Esta condenação, decretada em 1975, era referente a vários delitos menores ocorridos entre Maio de 1972 e Fevereiro de 1974 e à morte de um guarda fiscal numa empresa, que lhe foi imputada quando foi detido 2 meses antes de 25 de Abril de 1974.
Conheci o António Ferreira em 1980, na Colónia Penal de Pinheiro da Cruz, quando se encontrava a cumprir esta condenação. Era um companheiro excepcional, amigo do seu amigo, autodidacta na prisão, de uma cultura acima da média, cordato com todos, um preso de conduta irrepreensível (nunca agrediu ou ofendeu um companheiro ou funcionário) mas não subserviente, antes com um forte sentido do exercício da cidadania que as grades da prisão não o impediam de exercer.
Estava na primeira linha de denúncia das injustiças, da corrupção e da prepotência que existia e existe no sistema prisional. Na altura, nutria simpatia pelo ideal comunista, que já lhe vinha detrás, do sentir da exploração na sua infância e juventude (mais tarde viria a abraçar os ideais anarquistas). Oriundo de uma família pobre da zona de Oliveira do Bairro, fruto do seu inconformismo e revolta permanente, viria a ser detido e enclausurado pela primeira vez, com apenas 17 anos, na Prisão Escola de Leiria, em 1958, por pequenos furtos, ali permanecendo até 1972!
Ao todo, numa vida de 69 anos, são 47 de clausura! Para quem, no seu cadastro, apenas tem uma morte imputada (pela qual cumpriu a quase totalidade da pena!), alguma coisa de anormal se passa com a (in)justiça que estão a fazer-lhe… Ou estaremos perante o paradoxo do preso «perigoso», apanágio das práticas carcerárias que sobrevaloriza o factor de perigo para o sistema, em detrimento do eventual perigo para a comunidade?
Quem tem «medo» do António Ferreira?
*Publicado no Semanário Privado em 19 Agosto 2009
Foto: DR
Mais informação sobre António Ferreira em
http://libertemferreira.no.sapo.pt/
Ao que parece, a situação do António mantém-se. Não seria de organizar coisa com mais impacto, nomeadamente, um protesto público junto da DGSP?
ResponderEliminarLi sobre isto num cartaz que encontrei na rua. Estou convosco.
ResponderEliminarSão "mais graves" os crimes que ameaçam o sistema do que os investidos contra a comunidade, e este caso confirma-o.
ResponderEliminarBom trabalho, o vosso! Parabéns!