sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Trabalho e Penas

Sistema de penas, problema político e moral
por António Pedro Dores *

«O trabalho penitenciário está cada vez mais privatizado e coloca questões éticas (…). A privatização de prisões nos EUA já é uma realidade e cerca de 77 mil presos estão em cadeias (…) privadas. Muitos sindicatos denunciam os reduzidos salários e a falta de direitos destes trabalhadores, muitos dos quais forçados a trabalharem para obterem saídas antecipadas», escreveu o Jornal de Notícias .


«Negócio de 126 milhões de contos por ano levanta questões de concorrência no mercado interno» dos Estados Unidos, noticiava o Público . Com a reacção de George W. Bush aos ataques de 11 de Setembro de 2001, o problema político prioritário nas prisões passou a ser a tortura. As organizações de Direitos Humanos notaram que, afinal, era no Ocidente que as forças que se bateram pela pacificação social e pelo Direito universal estavam a ser derrotadas e ultrapassadas. Lá onde a escravatura foi abolida, o trabalho forçado, imposto sobretudo a descendentes de escravos, continua a gerar lucros. São-lhes retirados direitos políticos, não apenas durante a pena mas por toda a vida.

O trabalho forçado com que António de Oliveira Salazar construiu algumas das prisões portuguesas criou problemas de segurança. A comparação dos níveis de violência nas prisões portuguesas, através dos registos de ocorrências, revelou uma redução significativa de eventos violentos com o fim dos trabalhos forçados.

O trabalho obrigatório dos presos aumenta os riscos de insegurança, o que, por sua vez, aumenta a necessidade de guardas e diminui a funcionalidade das medidas de reintegração social. Moralmente aproxima-se demasiado do trabalho escravo (a redução da dignidade pessoal ao mínimo) e, talvez por isso, levanta problemas de consciência, para lá dos problemas práticos. O trabalho livre na prisão, por outro lado, tem sobretudo um carácter ocupacional. É uma forma de escapar ao ócio forçado. Embora em 2003 o provedor de Justiça, Henrique Nacimento Rodrigues, desejasse que fosse de outro modo: «Recuso-me a aceitar uma perspectiva até agora vigente, que vê na remuneração do trabalho prisional uma simples gratificação do trabalho, aliás prestado por quem, em outros tempos, nem à mesma teria direito. (…) A remuneração que os reclusos [recebem] (…) tem sido relativamente baixa e distante do salário mínimo nacional» .


A realidade contestada nestas declarações persiste ainda hoje. A remuneração da faxinagem, todo o género de tarefas indispensáveis à operação das prisões, desde o serviço de distribuição de refeições até à limpeza, situava-se entre 2,10 e 3,10 euros em 2003; e entre 2,70 e 4 euros actualmente. O trabalho indiferenciado gera cerca de 80 euros, por 30 dias úteis. Os trabalhos estão hierarquizados. Os indiferenciados dividem-se em 2.º ajudante e 1.º ajudante; os especializados são técnicos de biblioteca e arquivo e de lavagem de roupa (com remunerações de 1.º ajudante), operários, sapateiros, alfaiates e barbeiros, com remunerações um pouco maiores. Os trabalhos mais desejados são os de atendimento ao bar, apoio à portaria e lavandaria, por causa das oportunidades de contacto com o público, interno e externo. O trabalho pode ser organizado rotativamente entre todos ou, conforme os desígnios da guarda prisional de serviço, os melhores trabalhos serem entregues a quem «tenha perfil», que é uma maneira de alguns guardas afirmarem a sua parte do poder arbitrário produzido pelos regimes penitenciários e, eventualmente, protegerem ou partilharem lucros associados.

Não se pode avaliar o trabalho dos prisioneiros como se avalia o dos trabalhadores assalariados, a não ser, talvez, quando estes últimos se encontram em luta contra a entidade patronal. Se em Portugal o trabalho deixou de ser forçado, e só trabalha quem quer, a situação de faxina é perigosamente próxima da do chibo, do colaboracionista, risco na prática omnipresente. Uns prestam favores a toda a gente, em especial aos presos que se constituem em referências de poder, seja por via da força bruta, do acesso a dinheiro ou a negócios, seja por serem contestatários do regime prisional. Procuram por essa via alianças capazes de os ajudar a suportar a mais degradada das condições humanas: servir o inimigo. Outros assumem a colaboração com as autoridades em troca da esperança de serem libertados tão cedo quanto possível, desprezando os seus companheiros (e a si próprios) como escória humana. O mais provável é que a maioria dos faxinas misture, em doses variáveis, estes dois tipos de atitudes, conforme a arte e a moral que tenham para se adaptarem às circunstâncias.

Circunstâncias essas, talvez convenha recordar, que são anti-sociais ao ponto de a morbilidade ser sistemática e universalmente muito mais elevada em meios prisionais do que no exterior, algo que é sobretudo evidente ao nível das doenças, mentais e contagiosas, e do obituário. Circunstâncias essas, ainda, onde a legalidade – a mesma legalidade que impõe condenações – perde radicalmente o seu valor intramuros, dando lugar à arbitrariedade.

Na prisão, o direito à greve ao trabalho está sujeito à repressão policial (equivalente aos assaltos às chamadas zonas problemáticas no exterior) e a castigos disciplinares aplicados a quem calhar (quando um agente de autoridade abusa do seu poder, por descontrolo ou por prazer, uma solução vulgar é construir um cenário em que a vítima é ele próprio, alegando ter sido atacado por quem aparece com efeitos do espancamento). Na prisão a lei é invertida.

Os operários não qualificados em liberdade inventam jogos mentais para acompanharem, suportarem e tornarem mais eficazes as suas rotinas laborais. Esse é o seu estimulante de resistência, cooperação e competição. Ainda que o trabalho seja exclusivamente mecânico – e por isso mesmo –, a mente precisa de estar tranquilizada, ocupada e focada no que cada trabalhador possa encontrar dentro de si como mais adequado para o ajudar a trabalhar.

Os faxinas, os trabalhadores presos, ao contrário, confrontam-se com a prioridade absoluta, legal e existencial, de voltarem à liberdade. Essa é a sua exclusiva preocupação e até obsessão. O trabalho é uma forma de um preso se manifestar interessado em acelerar o cumprimento da pena e evitar «atrasar». Nalguns regimes penitenciários, o tempo de trabalho tem impacto calculável no tempo de pena decidido, reduzindo-o. Em Portugal não é o caso.

Da experiência social da arbitrariedade perversa sobra pouca capacidade de concentração, ainda que as condições técnicas fossem as melhores (e nunca são). O quadro de vida extralaboral está sempre presente no trabalho. Ao contrário do trabalhador comum, cuja preocupação maior será manter o posto de trabalho, o preso está desejoso de trocar o posto de trabalho pela liberdade.

A organização, nas prisões, de ambientes de trabalhos similares aos desenvolvidos em liberdade tem custos elevados e retorno incerto. No Brasil, «as novas tecnologias estão introduzindo nas prisões novas oportunidades de trabalhar − bem mais agradáveis do que as antigas e, sobretudo, mais ajustadas às demandas do mercado de trabalho que os presos terão de enfrentar», escreveu José Pastore . Em Portugal, as novas tecnologias são olhadas com desconfiança pelos serviços prisionais, alegando-se razões de segurança.

Existe uma contradição nas finalidades do trabalho penitenciário pensado como um modo de mobilização de força de trabalho. Jamais se distingue a força de trabalho da pessoa sujeita a medidas de segurança. A reabilitação acaba por estar subordinada ao seu inverso: a exclusão à maneira actuarial.

De modo informal, o trabalho dos presos é usado, também em Portugal, nos tráficos ilícitos cujos interesses dominam as prisões. É uma extensão espontânea do trabalho recrutado pelos traficantes em meio livre para dentro das prisões, à sombra das políticas proibicionistas cujos tentáculos se estendem desde as mais altas instâncias sociais e institucionais, onde vivem os directores-executivos dos sectores informais da economia, até aos extractos populacionais a quem são oferecidos rendimentos inimagináveis de obter pelo trabalho legal.

Orientação actuarial, orientação ressocializadora

Na prática ambas as orientações, a actuarial e a ressocializadora, se aliam de formas complexas nas prisões. Tal como na táctica do polícia bom e do polícia mau, também os políticos escolhem para si próprios um discurso ressocializador (muito apreciado no nosso país) ou um discurso actuarial (com que Nicolas Sarkozy, Silvio Berlusconi ou Tony Blair caçaram votos). Na prática, na actualidade, é este último que conduz a prática penitenciária dominante.


O trabalho dos presos é, então, um misto instável entre uma forma de merecer o respeito (de si próprio e de terceiros) através de uma referência objectiva a valores socialmente partilhados, os do trabalho e os do dinheiro, e a colaboração com a instituição prisional. Nenhum trabalho de prisão, porém, assegura verdadeiramente nada do que o trabalho livre promete assegurar. Em particular, ao sair da prisão o ex-condenado enfrenta as proibições de emprego público e a probabilidade aumentada de integrar as taxas de reincidência, voltando à prisão.
A prisão hesitava entre ser um locus de retenção dos suspeitos e um modo de concentração dos excluídos. A penitenciária, porém, foi imaginada à luz das virtudes do trabalho forçado, de acordo com as perspectivas burguesas para os trabalhadores: isolamento e silêncio. O mesmo ideal foi combatido (mas em parte incorporado) pelos trabalhadores livres nas fábricas, através de duras lutas pelo reconhecimento dos seus direitos cívicos particulares. O direito de fazerem barulho e caos quando se divertiam na rua, a jogar futebol ou a entoar canções; o direito de manifestação e organização. O centro do debate moral, no campo da teoria económica como nos campos social e cultural, tem passado, nos dois últimos séculos, pela concertação destas duas perspectivas, ambas entendendo-se a si mesmas como superiores: a burguesa, concentrada nas necessidades funcionais de frugalidade e temperança (escondida atrás da gestão sigilosa ou mesmo secreta da acumulação do capital), e a popular, prometendo uma predestinação salvadora no sacrifício (a valorização do trabalho como centro existencial da humanidade e de cada pessoa).


O vulgo imagina, sem de facto reflectir sobre o que na verdade se passa, serem os presos, necessariamente, pessoas que preferiram roubar a trabalhar. Mais do que agentes de crimes, são violadores do imaginário social sobre o que deveria ser a moral. São julgados por não corresponderem àquilo que a sociedade imaginou – a liberdade e a igualdade. Perante este dilema, há quem tenha fé na sua própria esperança de tal ideal vir um dia a realizar-se, e de os criminosos se transformarem em trabalhadores. São os partidários da ressocialização.

Admitem, entretanto, até que a realidade se conforme com as suas teorias, entregar aos partidários das políticas actuariais a gestão das penitenciárias e dos presos, guardando para si um lugar de controlo dos desmandos. Do mesmo modo, os sentimentos populares dividem-se – de facto, todos e cada um de nós também se divide assim – entre o prazer da vingança (a pena) e a racionalidade de a aproveitar para qualquer coisa, na perspectiva de uma divisão de trabalho alegadamente utilitária com que ingenuamente se tem legitimado o trabalho moderno.

O trabalho prisional, pode dizer-se, é um museu vivo do trabalho protomoderno, quando as sociedades se confrontam com a contradição entre adoçar a natureza (vertente privilegiada pelas doutrinas corporativas e da integração social) e explorar os povos (vertente privilegiada pelas doutrinas da luta de classes e do conflito estrutural).

O trabalho prisional é sobretudo uma expressão institucional instável e contraditória do inconsciente colectivo, ainda a trabalhar os traumas recentes da história da modernização. O trabalho prisional não será tanto uma forma de integração reaccionária pelo trabalho no quadro da globalização, procurando forçar a redução dos salários dos trabalhadores de um determinado país para o nível dos praticados na China. Será sobretudo, e para o grosso da população prisional, uma forma de exclusão política dos excedentários criados pela globalização, que precisam de ser controlados. Mais importante do que os Estados Unidos poderem argumentar ser o seu modelo económico melhor do que o Estado social europeu pelo facto de produzir menos desemprego (utilizando o efeito redutor nas estatísticas do trabalho proporcionada pelo facto de terem a maior colónia prisional do mundo), terá sido a vitória alcançada pelos republicanos, no primeiro mandato de Bush filho, devido a grande parte de os negros da Florida estarem impedidos de votar por terem sido um dia condenados.

O sistema de penas é sobretudo um problema político e moral. Reduzi-lo a uma questão económica não é a melhor forma de dar conta do modo como as penitenciárias se constituem em formas de viver os traumas da sociedade.

Nas prisões, nem só os presos trabalham e nem só o trabalho dos presos levanta problemas morais. Espaço institucional privilegiado para práticas imorais, como a tortura, encobertas pelo segredo corporativo e autodefensivo de profissionais tão social e politicamente estigmatizadas como os presos, os trabalhadores livres dos serviços prisionais confrontam-se com a indispensabilidade de serem, no mínimo, cúmplices dos encobrimentos, justificados pelo segredo profissional, e, eventualmente, perpetradores de crimes contra a humanidade. A psicologia social já comprovou ser o arranjo institucional penitenciário um forte catalisador de comportamentos mefistofélicos em seres humanos normais. A história moderna revela-nos como tal perversidade institucionalizada pode ser erigida em política de Estado e condicionar a vida de povos inteiros.

É preciso escrutinar o trabalho dos presos, mas também todas as formas de trabalho em função da moral que as organiza, e verificar como os boicotes dos trabalhadores aos comércios ilegítimos de potências ideológicas, económicas e militares e de empresas imorais, em geral, têm, actualmente, um impacto eficaz na mudança do mundo.

Atendendo especificamente ao campo prisional, na perspectiva de um novo mundo que venha a ser possível, deve-se considerar, divulgar e defender a perspectiva de organizar, com menos custos e mais sucesso pessoal e social, prisões sem guardas . Seria prioritário inscrever no programa político dos movimentos de transformação social a luta pela criação das condições para acabar com profissões moralmente ingratas e perversas, apesar da crise de emprego.

*Membro da ACED, Sociólogo e professor do ISCTE, Lisboa


[Artigo publicado na edição portuguesa do LE MONDE DIPLOMATIQUE, II série, nº46 - à venda nas bancas http://pt.mondediplo.com/]

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