domingo, 18 de setembro de 2011

Abusos e maus tratos na Carregueira

Reproduzimos, na íntegra, uma carta remetida pela ACED à ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz

Ex.ma Senhora Ministra da Justiça


O recluso Luís Manuel Seixas Inocêncio, preso na Carregueira, teve oportunidade de reagir ao relatório que V.Exa. enviou à ACED em resposta às nossas queixas.
Previamente queremos salientar que as nossas queixas são produzidas com base em contactos muito breves com os reclusos e que, portanto, é natural que existam mal entendidos na transmissão das mensagens. Não apenas porque a interpretação que se faz das mensagens pode ser mal feita mas também porque as forças de expressão podem ser tomadas como factos.


Não estamos, pois, em condições de exigir de terceiros informações rigorosamente fiáveis e independentes dos interesses em jogo, nem o faremos. Mas podemos notar as contradições das explicações e procurar avançar na definição do que seja a verdade, em diálogo, apesar de não estarmos autorizados a comunicar com os presos (a não ser por iniciativa deles). Por isso ficamos dependentes de na ocasião em que somos contactados pelo mesmo preso (certamente a respeito de outro assunto, como foi o caso) termos presente o seu dossier e de haver tempo para dar a conhecer a versão dos factos contada pelos serviços prisionais, de modo a ser possível contrapor o que houver a contrapor. É nesse espírito que nos dirigimos a V.Exa.


O recluso já está em cela individual e o caso que aqui vamos referir está, para ele, encerrado. Mas não foi por reclamar cela individual que ele entrou em greve de fome, ao contrário do que se diz no relatório. Terá sido, insiste o recluso, por ter estado demasiado tempo na admissão, portanto em regime especial. A norma prática são estadias de 2 ou 3 dias, disse. E pede atenção ao facto de não ser de ânimo leve ou por prazer que se entra em greve de fome. Só se entra numa luta desse tipo precisamente por se ter sido apoucado e desprezado. No fim, a greve de fome é uma forma de reclamar respeito.


Agora terá a ACED de fazer um esforço de memória, apoiado em notas, para procurar dar elementos que possam, por um lado, revelar as práticas prisionais e, por outro lado, corrigir, de acordo com a versão do recluso, o que efectivamente se terá passado.


No relatório apresentado nota-se haver um problema de incoerência com as duas datas de entrada no Hospital. Depois de sair dia 20 não poder ter entrado dia 11.O recluso não sabe indicar datas. Mas sabe que entrou em greve de fome ao nono dia de estadia na cela de admissão. Não por querer cela individual mas por saber que normalmente os presos estão 2 ou 3 dias naquela regime e por serem dez dias o número máximo de dias autorizado por lei. No vosso relatório diz-se serem quinze os dias legalmente admissíveis. A convicção do recluso é a de que são 10 dias. E sobretudo que, na prática, são muito menos dias a norma. O facto de legalmente ser admissíveis estadias de 15 dias na admissão não significa que não exista obrigação de informação ao recluso sobre as regras legais e também as regras tácitas vigentes. Do mesmo modo, a informação dos serviços para a informação do público poderia aludir a essas facetas. Teria a vantagem de assegurar os leitores de que a lei não é entendida como um escudo contra as eventuais responsabilidades disciplinares de quem não respeita a lei mas antes como um quadro de referências normativas para se cumprirem as finalidades institucionais.


A greve de fome atirou o recluso para um regime especial de isolamento considerado próprio para essas situações, sem autorização para contactar com o exterior. Foi por isso que, disse, suspendeu a greve por um dia, de modo a obter a possibilidade de comunicar com o exterior, e logo voltou à greve de fome, para reclamar respeito, no sentido acima mencionado.


As contas que o recluso faz são que esteve 20 dias em regime extraordinário – admissão, isolamento por razões de greve de fome, no hospital prisional (depois de ter passado por um hospital civil). Não são de facto os meses referidos na queixa da ACED, embora possam parecer meses para quem está preso e se sente desrespeitado. Mas também não são 4 dias na admissão: são nove dias e depois (no regresso do Hospital) mais 3 dias, segundo o relato do recluso. E foi precisamente por o estarem a preparar para ser vergado, isto é para aceitar estar em admissão o tempo que as autoridades prisionais entendessem, que entrou em greve de fome ao terceiro dia da segunda entrada na admissão.Com certeza que os registos de entrada na cadeia e no hospital prisional poderão desfazer aqui as dúvidas que possa haver. Pois no relatório prisional diz-se que o recluso entrou no hospital 9 dias após dar entrada na prisão (vindo do hospital) e o recluso diz ter entrado em greve de fome nesse dia, tendo sido – se bem entendemos – transferido dentro do EP para a zona de presos em greve de fome. Estes relatos são contraditórios com os mesmos registos de entrada e saída.


Quanto ao caso do rasgar do papel com o número de telefone da mãe adoptiva há uma história a contar e um comentário a fazer. Comecemos por este último. O que terão os serviços prisionais a ver com a relação adoptiva da senhora que o preso chama mãe adoptiva e o recluso? A que propósito vem o comentário sobre a estranheza da senhora directora a respeito de o recluso ter duas mães? Porque não indagou junto da educadora o que possa tal relação querer dizer? Porque se permite redigir insinuações vazias de conteúdo num documento oficial em resposta ao gabinete da senhora ministra? Não nos parece razoável o pensamento de intromissão na vida privada dos reclusos e ainda menos a prática de partilha dos desejos de intromissão com os superiores hierárquicos.


O que estava em causa era a possibilidade de inscrição no registo dos telefones autorizados ao recluso o número de telefone da senhora, que trata como mãe (apesar de também tratar como mãe a sua mãe biológica). Ao contrário do que está escrito, ao recluso não foi inicialmente autorizada a inscrição do telefone da mãe adoptiva por este número não estar identificado nominalmente, como é obrigatório para os serviços prisionais. Foi no processo de registo do número, depois de chegados à prisão os documentos requeridos, que o episódio do rasgão do papel ocorreu – por manifesta falta de respeito.


O episódio foi exposto à directora e à educadora. Ao contrário do que está escrito. Ainda recentemente o assunto terá vindo à baila numa conversa com a educadora, disse o recluso.


Em resumo: o recluso não reconhece o texto do relatório subscrito pela senhora directora como um documento capaz de fazer justiça ao que se passou. Mas reconhece que a situação de discriminação e falta de respeito que sentiu ser-lhe dirigida durante um tempo, e que o levou a reagir com greves de fome sucessivas, já não ocorre. E que o facto de estar com costelas partidas sem tratamento – como parece ser o caso actualmente – não é uma atitude discriminatória contra si. (O que deixa a ACED mais inclinada do que já estava a pensar ser a negligência no cuidados de saúde uma das políticas de austeridade em prática nos serviços prisionais.)


A ACED deseja contribuir para que as políticas prisionais possam ser escrutinadas e que os políticos sejam chamados a fazer as políticas prisionais, em vez de as deixarem nas mãos a que até agora têm estado entregues. Em particular lamentamos que os serviços de inspecção se revelem incapazes de identificar com independência e objectividade os problemas de “falta de respeito” (as políticas de quebrar a dignidade dos presos para mostrar que quem manda), fechando assim um círculo corporativo de poderes nem sempre ao serviço do Estado.


Por isso vemos com interesse a comunicação que a senhora ministra entendeu enviar-nos a respeito deste caso.


A Direcção da Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento

Sem comentários:

Enviar um comentário