quarta-feira, 23 de março de 2011

Mentiras, conspirações e tortura

Eis uma síntese possível da vida de Carlos Filipe Viegas Gouveia, tornado virtualmente famoso por um vídeo em que fez de alvo de uma taser disparada por uma trupe de guardas prisionais vestidos com fardamento de choque, em Setembro de 2010.

Abandonado aos 4 anos de idade pela família, sofreu um internamento bárbaro de que sempre se quis livrar. Mas foi sempre acompanhado de perto pela perversidade instituída e pelos covardes que, como os vermes, se alimentam das misérias humanas, do isolamento social e da vulnerabilidade. Aos 16 anos foi condenado (nunca, ao contrário do que circulou, por tráfico de droga, pediu-nos para frisar) a alguns meses de cadeia. Foi dentro da prisão que lhe foi imposta nova condenação criminal que aumentaram para 12 anos o que eram dois, após terem armadilhado o jovem de 17 anos na prisão de Vale de Judeus.

Neste momento conta seis anos consecutivos em prisões de segurança (após a entrada em vigor das práticas de castigos arbitrários implementadas a partir de 2001) considerado muito perigoso, quando deveria ser muito incómodo, como melhor se poderá ver adiante.

O seu caso é, efectivamente, não só uma vergonha para o sistema prisional mas também para o Estado e o próprio país. Como é possível existir gente com tal percurso de vida? Quantos outros pereceram ou vão perecer nos próximos tempos por estarem sujeitos a tratamentos equivalentes? Como é possível haver um país que admite que isso aconteça? Será para encobrir as nossas responsabilidades colectivas de organizar asilos contra todas as pessoas em dificuldades, mulheres abusadas, órfãos, pessoas de idade sem condições de se governarem, que (também) nas prisões se admitem torturas?

Um contacto de hoje do próprio recluso recordou-nos um contacto anterior, em 2008, de que guardamos registo. Confessamos termos ficado paralisados com tal testemunho, sem saber o que fazer. Anexamos a carta que então nos enviou, para que vosso conhecimento.

Disse-nos ter mentido o sindicato dos guardas, oficiosa voz dos serviços prisionais, quando disse haver sido acusado de tráfico de droga, quando disse ter havido ameaças de greve de fome por parte dos outros reclusos, quando disse haver temor dos guardas de Paços de Ferreira sobre o comportamento do recluso. Alega como prova disso o seu cadastro (sem condenações por droga), o testemunho dos seus companheiros e o facto de serem guardas quem se dispôs a testemunhar no Ministério Público do Porto em processo por si aberto contra a Directora. Directora essa de candeias às avessas também com os guardas do estabelecimento onde trabalha. Eventualmente as investigações em curso explicarão os jogos de poder e os interesses em jogo, coisa que escapa, naturalmente, a Carlos Gouveia.

Não é invulgar o uso da mentira pura e simples por parte das autoridades para lidarem com pessoas que imaginam não se possam defender. Isso ocorre nos tribunais – onde o reconhecimento público e expresso por parte dos magistrados de que um polícia mentiu ao encenar uma acusação pode não ter consequências, com resignação dos advogados e da assistência e das instituições (o Senhor Bastonário dos Advogados parece ter-se referido à recorrência de casos semelhantes, sem nenhuma acção correctiva visível ter sido tentada) – e depois banaliza-se o seu uso nas instâncias policiais, até ao ridículo. Mas este ridículo funciona como intimidação, a acrescentar aos obstáculos mesquinhos mas eficazes ao acesso à justiça: por exemplo, a um homem que sempre viveu institucionalizado como Carlos Gouveia pede-se-lhe que pague 100 Euros para que o MP considere as queixas-crime contra as tutelas das instituições que o têm vindo a mal tratar desde criança.

A mesquinhez perversa que todo este sistema induz tem consequências indirectas. Três exemplos contados na primeira pessoa por Carlos Gouveia: no episódio da taser divulgado pela comunicação social há um momento em que o homem fica no chão da cela contígua à sua e a filmagem vai focar a porcaria da cela onde habitava. Nesse momento, espante-se o leitor, os guardas usaram o facto de a câmara não estar a filmar para descarregar sucessivas vezes a taser no corpo inerte do preso. Do segundo exemplo é vítima Bruno Silva, companheiro de Carlos Gouveia. Este último quis dirigir ao Tribunal criminal queixa contra a Directora da cadeia de Paços de Ferreira. Para isso era necessário registar a carta. Na falta de dinheiro, Bruno dispôs-se a pagar a despesa. A carta saiu. O tribunal deu conhecimento da chegada da queixa à direcção da cadeia que, por sua vez, castigou Bruno Silva – com aquela ligeireza e perversidade que a política das alas de segurança permite por decisão dos sucessivos governos desde 2001. A poucos meses do fim da pena, Bruno Silva foi internado no regime mais fechado por ter sido solidário com um companheiro a quem recusam sistematicamente qualquer possibilidade de existência desde os 4 anos de idade. Não é preciso nenhum pretexto para castigar Carlos Gouveia. O lugar social que lhe está destinado, faz muito tempo, é o castigo. Tratam-no como um animal: nisso concordam tanto as pessoas favoráveis às práticas instituídas de perversidade humana como as que se envergonham de ser possível existir alguém neste país com uma vida como aquela que é a de Carlos Gouveia. Ainda assim, num caso específico, a lucidez do preso e o despudor dos carcereiros estiveram na origem do reconhecimento de ter havido um erro no castigo aplicado (informal e, portanto, sem possibilidade de tutela ou recurso).

Feito o reconhecimento, segue-se a explicação da situação: embora haja um erro ninguém o vai querer assumir. Portanto, restou ao preso esperar que o castigo se cumprisse conforme foi determinado, para não ofender a falta de princípios de quem está encarregue de representar a autoridade do Estado.

Carlos Gouveia não desistiu de viver. Pelo contrário, pergunta-se o que lhe pode acontecer quando, dentro de alguns meses ou poucos anos, terminar de cumprir a pena e sair em liberdade. Desde os 4 anos que está institucionalizado e é mal tratado.

Quem assume agora a responsabilidade de reintegração social, quando nunca nenhum daqueles planos legalmente previstos para acompanharem o percurso penitenciário foi sequer pensado, quanto mais escrito?

A Direcção

ANEXO

Monsanto, 20h00 de dia 18 Jul 2008

Ex.mo Sr. Dr. António Pedro Dores

Venho por este meio expor a minha situação e pedir a sua compreensão e ajuda uma vez que sou uma pessoa sem meios económicos e sem qualquer apoio familiar, o que me torna mais frágil no sistema prisional e as suas atrocidades e perseguições doentias. Passo a relatar:

Fui criado em colégios e preso muito jovem, com apenas 16 anos, por crimes de delito comum. Estive preso preventivamente em Caxias, na Judiciária, no Montijo. Uma vez condenado fui transferido para o EP do Linhó para cumprir pena de dois anos. Foi nesse EP que começaram os meus problemas e perseguições doentias por parte do sistema prisional.

Como é lógico, derivado da minha idade e ter sido criado em colégios do Min da Justiça, era um rapaz rebelde e que não aceitava de bom grado algumas regras.
Como retaliação à minha conduta o Sr. Director pediu à DGSP para ser acompanhado por escolta do GIP quando fosse ao exterior para qualquer diligência. Os meus problemas foram sempre no interior e não no exterior. Mas baseada no meu comportamento, a DGSP concordou com o pedido do Sr. Director.

Comecei a ser tratado como um grande perigoso com apenas 18 anos e preso por delito comum e com pena de dois anos.

Mais revoltado com a minha situação e uma vez que piorava fui transferido para Sintra.

Passados 2 dias de estar em Sintra, os guardas prisionais fizeram uma rusga geral em que não respeitaram os pertences religiosos dos reclusos e na manhã seguinte à mesma deu-se uma revolta de reclusos, indignados com a situação.

Fui englobado nessa revolta e dados como líder da mesma e como retaliação fui transferido novamente para o EP do Linhó.

Foi instaurado um processo contra mim como líder do motim. Mas foi arquivado por não ter qualquer fundamento, uma vez que estava na cadeia havia apenas 2 dias.

Quando cheguei ao EP do Linhó fui recebido pelo Director que me informou que não me queria naquela cadeia. Passados uns dias fui transferido para Vale de Judeus, com apenas 19 anos e com uma pena de dois anos, dos quais já cumpridos 17 meses e faltando sete meses para ser libertado.

Logo que cheguei e dado que naquela altura a cadeia de Vale de Judeus era a pior cadeia do País e estava numa fase crítica uma vez que se deram vários homicídios naquele tempo, passados dias de estar lá fui esfaqueado e só não morri por sorte. Deixou-me várias mazelas para o resto da vida.

Revoltei-me ainda mais com a minha situação (…) e decidi me impor por força da vida para ser respeitado por todos em geral e adquirir o seu respeito e seguir a minha vida. Mas como é sabido, essa posição, se um por um lado estou a salvo, por outro estava lixado.

Passados dois anos tive um problema na portaria do mesmo EP. Numa saída ao MP: fui barbaramente agredido pelo grupo do GIP. Salvaguardaram-se invertendo a situação e disseram que tinha sido eu quem agrediu um elemento da corporação. Foi para porem um fim ao problema que tiveram de usar meios coercivos, o que justificou as várias agressões.

Como retaliação a tais situações fui internado na secção de segurança do EP do Linhó, uma vez que a câmara de vigilância estava estragada, como sempre mencionam nestes casos para que não seja apurada a verdade.

ai fui alvo de várias agressões, várias pressões. Fiz mais de 20 greves de fome, prejudicando o meu corpo. Fui internado, diversas vezes, em Caxias na prisão hospitalar, isso sempre porque nunca me conformei com a minha situação.

Nestes dois anos foram instaurados vários processos-crime contra mim. Foram todos arquivados por não terem fundamento.

Em todos os processos que sofri ao longo da minha condenação, e mesmo o que levou ao meu internamento em secção de segurança, fui sempre absolvido das várias acusações em tribunal. Mas sempre punido ao nível interno. O que mostra que a verdade de um tribunal é totalmente diferente e vai contra os sistemas prisionais. E o que prova que sou alvo de pressões e perseguições doentias por parte dos serviços prisionais.
Passados estes dois anos e 2 meses em que estive fechado fui aberto em Paços de Ferreira. O que até nem esperava. Pensava que iria ser transferido para Monsanto.

Permaneci um ano aberto em Paços de Ferreira sem um castigo e nem mesmo uma participação. Tive um comportamento exemplar, conheci a minha actual companheira e refiz a minha vida emocional e estava a fazer planos de continuar assim, uma vez que já tinha sofrido bastante.

Foi com enorme espanto e admiração que no dia 24 Jan 2008 fui avisado que ia ser transferido.

Realmente fui transferido. Fui direitinho para o EP de Monsanto. Já permaneço aqui há 6 meses sem ser notificado dos motivos do meu ingresso neste regime. Sem saber se cometi alguma infracção. Até à data o que me foi informado verbalmente pelo Director e Chefe de Guardas foi que avaliaram a minha situação e não consta nada contra mim nesse ano em que permaneci aberto. Que estou a pagar pelo meu passado. O que vem reforçar a ideia que estou a ser alvo de perseguições.

Há dois meses escrevi à Ex.ma Sr.ª Directora Geral dos Serviços Prisionais a expor a minha situação. Não obtive resposta. Penso que não sou digno de uma resposta da sua parte. Mas fui informado verbalmente que a mesma mandou pedir a minha avaliação.

Escrevi também ao Procurador-geral da República Dr. António Pinto Monteiro, para apresentar queixa contra o Estado português, DGSP e contra o ex-director de Paços de ferreira, que fez a proposta para eu entrar neste regime.

Pelo exposto venho pedir a sua compreensão e ajuda e que possa divulgar o meu caso às várias entidades e instituições que me possam ajudar,

Com os melhores cumprimentos e o muito obrigado pela atenção,

a) Carlos Filipe Viegas Gouveia

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